sábado, 19 de junho de 2010

Ir jantar de "pasteleira" só porque é sexta-feira

Chegado o fim do mês, vários amigos fanáticos por bicicletas antigas vestem-se a preceito, lustram cromados e gargantas e juntam-se no adro da igreja matriz para uma noite de pedalada. E é preciso tê-la.


"Dezasseis homens e uma mulher saíram à rua, numa sexta-feira, de pasteleira"



"Quantos?" A ordem frásica pouco importa. E o número igual. Rima e é verdade. O largo da igreja matriz de Santo Tirso recuou uns 50 anos no tempo, disfarça-se a escuridão sépia dos candeeiros com luz de velas, lêem-se versos de pé quebrado, flor na lapela do traje. Que é o que houver no armário lá de casa, contando que seja a preceito. É assim que começa, ou foi assim que começou naquela sexta-feira.


"O Jerónimo" nas escadas, "o Pinto" da flor com a vela, a versalhada atirada, as máquinas reluzentes estacionadas. Será assim que se diz de bicicletas mais vividas que os ciclistas? Não interessa. O que conta, isso sim, é o aperitivo que "o Jerónimo" trouxe na algibeira de couro envelhecido, aquela com que começou a carreira, ele que é carteiro na vida real. Vinho do Porto no lusco-fusco, os últimos brilhos do ocaso a misturar-se com os da iluminação pública nos cromados lustrados das pasteleiras. São elas as rainhas da festa.


É assim todas as últimas sextas--feiras do mês. Será mais às claras aos domingos de manhã, com quem apareça, só para olear as máquinas resgatadas da ruralidade do concelho. Sem as socas, as boinas, os coletes ou os baldes de couves. Às sextas, é diferente. O "grupo das pasteleiras", chamemos-lhe assim, não brinca em serviço. Ideia: arrancar às 20.30 horas do pelouro, suar as estopinhas a puxar por peças pesadas e sem tecnologia, vadiar pela cidade, comer e beber e continuar noite dentro, até o cansaço vencer a brincadeira.


"O Jerónimo" segue à frente. Junta-se-lhe "o Napoleão", "o Bartolomeu", "o Domingos", "o Capela", um por aí adiante de compinchas com apelidação a lembrar o campo, disfarçados de passado. No fundo, nada disto é mais do que "ir jantar de bicicleta", naquela sexta com paragem na praça do município, ou não acontecesse por lá a anual feira das tasquinhas. Verde fresquinho a enganar a chuva, força nos pedais, o segredo é usar os passeios. Sim, o regresso ao passado tem desvios e há coisas desse passado que as modernas barrigas das pernas dispensam, como o atribulado paralelo da calçada. Até porque há ali relíquias que exigem o maior dos cuidados.



São daquelas que, até perceberem o filão, os agricultores davam aos loucos que as pediam, sem olhar para trás, menos um mono na casa da eira, toma. Era. Algumas não passavam de quadros sem rodas. Nada que uma busca criativa na Internet não resolva, há sempre fotos a mostrar como eram os tempos de antanho, o engenho e a arte montam o resto.


Fortunas. Gastam-se fortunas nelas, no brinquedo para ir jantar na última sexta do mês.

Versalhada e vernáculo

Naquela, a derradeira de Abril, havia maias a enfeitar os velocípedes. E, como nas outras, flores de plástico e cestinhas na "pasteleira" da senhora, buzinas a palrar e campainhas a tilintar.

Azimute: a cabidela da tasca do Sanguinhedo, regada a gaiteiros, "o Napoleão" na palheta da Beira ou na gaita-de-foles, "o Galileu" no bombo, "o Capela" na caixa, os monstros metálicos arrumados na arrecadação, ao abrigo das cobiças. Mais versos de pé quebrado, entremeados com dizeres vernáculos, "a bicicleta é a melhor amiga do homem. Não se queixa quando a montamos..."




"Mas que grande malandrada, ó Jerónimo!". Socas a pairar sobre a mesa, verde tinto a pintar a beiça das canecas, jesuítas à sobremesa. Foi assim naquela sexta-feira, quase até à aurora.

Fotos de uma ida a Fátima de pasteleira cedidas por Pedro Cunha (www.bikeonelas.com)

Texto:
IVETE CARNEIRO

Jornal de Notícias

 
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